quinta-feira, 21 de outubro de 2010

A Pequena Nina - Parte 1 de 2

Por Mariana Juer Taragano



No reflexo do olhar, havia a casa com suas cortinas descoradas a balançar para fora da janela, como quisessem fugir. A grama, já não tão bem cuidada quanto noutros tempos, estendia-se sem brilho, sem cor, sem volume, até a pracinha de onde observava o cenário. Entre a casa e o banco, do qual pendiam suas curtas perninhas, além da enorme extensão de grama, para suas dimensões ainda infantis, havia a mureta que também já não era a mesma; não tinha mais cor e sua tinta, há muito, já descascara deixando lascas, ou lágrimas, de despedida de um tempo que não voltaria. Por trás da mureta, via-se parte das plantas e flores ressecadas que escondiam a humilde casa, onde vivia com sua mãe.

Ao sentir no ar um cheiro familiar, pensava como a comida havia melhorado com o passar dos anos ou, talvez, seu paladar ficara mais solidário com o sofrimento materno. Do alto dos seus sete anos, sentia que tinha uma missão a cumprir, só que esta ainda não era tão clara em sua mente e, tampouco, saberia como chegar aos objetivos finais.

Observando suas próprias palmas, lembrava-se de tempos antigos. Suas mãos cresceram até os quatro anos sob os afagos de pais carinhosos, mas certo dia, sem mais nem por que, seu pai fora arrancado de sua família, como sua mãe falava, por um anjo mau. Nina sabia, no entanto, embora não dissesse, em sua cumplicidade com as justificativas e sentimentos da mãe, que seu pai, um dia, saíra por livre e espontânea vontade por aquela porta. Porta que agora mirava semicerrada, enquanto ouvia, entre os poucos sons de pássaros a seu redor e ecos de crianças ao longe, o raspar da vassoura que lhe era tão familiar nas manhãs de sábado.

Aquele som fazia-lhe lembrar dos tempos em que seu pai, carinhosamente, surpreendia com um abraço quente sua mãe distraída enquanto cuidava do assoalho. Ela sempre reclamava – “meu bem, olha a Nina!”. E Nina não entendia o que havia para olhar nela. Era a felicidade de seus pais que dava prazer de ver. Não sabia exatamente por que, mas lhe enchia de gozo ver sua mãe corar com um brilho diferente no olhar. E divertia-se, pois sempre, sempre, ao espantar o marido, dava uma última olhada sobre os ombros, enquanto ele se afastava com um andar charmoso que era motivo de brincadeiras entre as moças da casa. Nina adorava ter esse pequeno segredo com sua mãe e pensava “um dia, quando crescer, quero ser feliz assim”.

Nina tentava encontrar um caminho para soltar sua mãe da corrente que já não lhe permitia mais aquele olhar, aquele brilho, aquele corar. “Será que tenho culpa?”pensara por vezes, até sua mãe convencê-la de que acreditava piamente na culpa do tal anjo mau.

E, influenciada pelo esmaecimento das lembranças do pai, convencera-se a parar de tentar entender sua partida. Mas, vendo a mãe aos trapos, varrendo agora a frente da casa, não tirava de sua pequena cabecinha sua responsabilidade pelos cuidados da mãe, que tantas vezes falara que, naquela casa, as “moças” sempre deveriam sorrir e estar bonitas.

Um som repentino quebrou a concentração de Nina. Um homem, a passos acelerados, aproximava-se. Pediu licença para sentar-se ao seu lado. E começaram a conversar. Conversaram sobre o tempo, o céu e o vento. Ele esperava por alguém e receava ter-se atrasado. Nina garantiu-lhe que, por ali, há muito tempo, não passava ninguém, pois estava de vigília há “horas e horas e muito mais horas”, devido aos exageros das mentes infantis. O homem sorriu e perguntou o que Nina tanto vigiava. Nina explicou que, certa vez, ouvira sua avó dizer que, para compreender melhor uma situação, era preciso olhá-la de fora e era isso que tentava fazer. Com indiscrição meninil, começou a relatar em detalhes cada pedacinho na história de sua vida. História vivida e imaginada, mas que, por certo, emocionava o desconhecido. Este se encantava com as preocupações de Nina e admirava-se com sua sensibilidade.

Em certo momento, Nina deu-se conta de que conversava com um estranho, o que era proibido no “estatuto residencial dos Carvalho”. Mas decidiu ignorar a regra, já que se sentia tão bem naquele momento. Parecendo ler sua mente, o homem, interrompendo a história de Nina, resolveu apresentar-se. Apertou sua delicada mãozinha e afirmou-lhe que aquela amizade ali iniciada jamais seria abandonada. Nina, então, questionou “nem que o anjo mau venha?”. Aníbal, com um doce olhar, afirmou que acreditava mais em fortes amizades que em anjos maus, não querendo desmerecer as justificativas da mãe daquele pequeno anjinho que o emocionava.

A hora do almoço estava próxima, o que sabia Nina somente pelo cheiro da comida que sentia na praça. Sabia que teria que deixar o final da conversa para outro dia, mas temia não haver um novo encontro para que seu amigo a ajudasse a encontrar uma solução para sua questão. Também não poderia demorar a tomar uma decisão, pois sua mãe iria procurá-la e, certamente, não gostaria nada de vê-la conversando com o estranho. Nina despediu-se de Aníbal pedindo que voltasse a visitá-la naquele mesmo local. Ele prometeu que estaria lá no dia seguinte pela manhã. Assim o fez.

Quando Aníbal chegou, Nina já o esperava, desta vez não tão concentrada, mas ansiosa pela expectativa do reencontro. Aníbal, ao cruzar a praça do ponto de ônibus até o banco onde se encontrava Nina, acelerou os passos. Também estava ansioso. Quando Nina o viu, rapidamente abriu um sorriso e seus olhos brilharam como se o esperasse há “horas e horas e muito mais horas”.

Sentaram-se como no dia anterior, lado a lado, olhando para frente, onde estava o cenário da pequena Nina. E puseram-se a falar. Aníbal mostrava-se curioso, interessado tanto quanto fosse possível e seu interesse agradava a menina que, claramente, não conversava com ninguém havia tempos. Em certos momentos, parecia não suportar a própria respiração.

Aníbal perguntou por que ela não brincava com outras crianças em tão ensolarado dia de verão, quando as crianças, de férias, têm como únicas preocupações, as brincadeiras. Nina olhou em seus olhos, deu um sorriso amarelo, olhou para a casa e respondeu que ela tinha uma “missão maior”, e que essa era sua única preocupação. Contou-lhe que durante o período de aulas, já brincava bastante, e as férias deveriam ser dedicadas a “tudo aquilo que há de importante na vida, mas que não dá para resolver enquanto trabalhamos, ou, no meu caso, estudamos”. Aníbal se impressionava com as frases sabidas de Nina e, a menos que receasse interromper alguma fala importante, sempre questionava onde ela havia aprendido aquilo. Mas havia naquele pequeno corpo, algo maior que frases de efeito e historinhas infantis. Havia uma alma enorme, amadurecida a duras penas pelo sofrimento que a vida já lhe causara, tão cedo. E indignava-se com as preocupações da menina. Tentava, o quanto fosse possível, eximi-la de qualquer vestígio de culpa.

Nina causava em Aníbal um sentimento paternal que o encantava. Embora tivesse curiosidade em conhecer as demais personagens de sua história, e por que não sua mãe, já que ambos estavam livres e desimpedidos, o carinho que já sentia por aquela pequena garotinha era suficiente para aquecer seu peito naqueles dias sem grandes emoções.

Nina calou-se por algum tempo e Aníbal respeitou sua decisão pelo silêncio. Ela franziu a sobrancelha e fitou a casa. Alguns longos segundos depois, não resistindo, Aníbal perguntou se estava tudo bem. Nina respondeu que precisava entrar, mas que gostaria de vê-lo novamente no dia seguinte.

Aníbal, brincando, respondeu: “Nina, você é uma menina de sorte, sabe por quê? Aliás, eu também sou um rapaz de sorte” - e Nina sorriu com um olhar de curiosidade. Aníbal continuou - “porque eu sou professor e, por isso, também estou de férias!”. Apertaram-se as mãos e Nina correu para casa.

Apressada, já gritando pela rua “mãe, mãe!”, praticamente invadiu a própria casa. Queria saber por que, naquela manhã, sua mãe não saíra para molhar as plantas ou varrer o quintal. Abraçando Nina e puxando-a para seu colo, explicou que estava bem e que mudara a ordem dos afazeres. “Minha bonequinha, às vezes, grandes mudanças começam pelas pequenas coisas”, falou sua mãe adicionando mais uma frase de efeito a seu repertório.

Nina resolveu contar à mãe que fizera uma nova amizade. E, ao ver a curiosidade da mãe no sorriso acompanhado de um levantar de sobrancelha, ficou feliz. Contou que seu amigo era mais velho, que tinha dez anos e que sempre conversavam na praça na frente de casa. Disse que era alto e que não falava muito, mas que dava risadas das suas piadas. Contou que inventaram uma brincadeira de contar histórias com enigmas para serem desvendados em conjunto. Havia ainda a brincadeira dos polegares. Sua mãe perguntou se não corriam pela praça e, um pouco sem graça, Nina disse que sim, pois aprendera que “uma pequena mentira para o bem pode ser válida, mas só de vez em quando”. Nina, há muito, sentia falta desse colo da mãe, recheado de brincadeiras, beijinhos, cheirinhos e conversinhas gostosas de quem é cúmplice. E lembrou à mãe que elas não tinham mais um segredo em comum, precisava de um segredo com urgência! Mas qual seria? Já estava próximo do horário do almoço e as duas foram para a cozinha juntas e sorrindo, envolvidas pelo papo nostálgico. Nina recordou do dia em que sua professora mais querida afirmou-lhe que logo, logo sua mãe voltaria a sorrir. “Dito e feito”, pensou.

No dia seguinte, antes de ir ao encontro com o novo amigo, Nina reparou que sua mãe estava diferente, perfumada, mais arrumada e alinhada. Arrumava a casa cantarolando alguma coisa. Quando Nina foi ao quintal, percebeu que já estava arrumado e “reflorestado”. Nina ficou orgulhosa da atitude ambiental da mãe e saiu correndo para abraçá-la e parabenizá-la, mas lamentou não ter participado do feito. Sua mãe tranquilizou-a, afirmando que de agora em diante a responsabilidade sobre a “floresta” seria exclusivamente de Nina. E ela ficou feliz. Sabia que tudo aquilo significava algo além.

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