quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Sobre Mãos e Fotografias

Por Mario Fioretti
um texto lindo, emocionante, de um amigo muito querido



Eu olhei para as minhas mãos. Me detive, longamente, a olhar para seu formato, sua cor, suas cicatrizes, minhas lembranças. Assim como os olhos, as mãos são capazes de denunciar nosso estado de alma. Se estamos tensos, elas ficam nervosas, frias, pálidas. Se calmos, pousam suavemente uma sobre a outra, se afagando num carinho fraterno. São elas nossas armas de ataque, fechadas e fortes, ou de defesa, tentando proteger, às vezes inutilmente, o corpo ao qual pertencem. Tapam nossos olhos para evitar as mágoas visuais ou nossos ouvidos, para bloquear as influências sobre nossos espíritos. Às vezes, ainda, tapam nossas bocas, para conter palavras que insistem em sair com nossas emoções.
Elas são uma das poucas partes do corpo que conseguimos olhar na sua totalidade sem ajuda de espelhos, e por isso tenho tanta intimidade com as minhas. Conheço-as profundamente, cada marca, suas veias, cada dedo e as linhas da vida que já mentiram sobre o meu futuro, muitas vezes lido e pouco concretizado.
Desde pequeno, sempre tive o hábito de olhar para elas e me lembro como, ainda com 7 ou 8 anos, eu via formas engraçadas, tão malucas que não podia dividir com ninguém, com medo de ser tachado de louco, ainda tão pequeno. Meu dedo indicador esquerdo, por exemplo, era branquinho, com uma unha pequena, sem graça, achava ele parecido com o Paulo, um vizinho velhíssimo que já devia ter uns 15 anos, mais ou menos.
No anular, sempre da mão esquerda, uma pequena verruga dominava a cena. Ela ainda existe, encoberta por marcas, pelos e rugas, que só eu consigo ver porque sei onde se esconde.
Nunca gostei do formato das minhas mãos, gordinhas, não importa o quanto eu emagrecesse. Herdei de meu avô Vitor. Na verdade, elas são cópias irritantemente fiéis das mãos dele, e inconscientemente, sempre o culpei por isso. Preferia que fossem iguais às do outro avô, Dino, o pianista, longas, bem desenhadas, elegantes. Mas tive que me consolar com as mãos de um trabalhador espanhol, de palmas grandes e dedos rechonchudos e curtinhos, que eu sempre temi que associassem a um pinto pequeno.
Com o passar dos anos, elas foram ganhando cicatrizes de várias origens. O que mais contribuiu foi minha mania de construir aviõezinhos de madeira, quando operava com pouca destreza estiletes e faquinhas de diversos tipos. Muitas delas já sumiram ao longo dos anos, uma das vantagens do envelhecimento.
No polegar ainda tenho uma grande que já foi maior, conquistada ao subir num muro de cimento rústico para pegar a pipa que havia caído no terreno baldio. Primeiro dia de férias, fiquei com o dedo pingando pus o mês todo, e deixou uma cicatriz no dedo e outra na memória, pelas férias doloridas.
À medida que eu ia crescendo, as mãos começaram a desenvolver outras habilidades. Gostava de desenhar. Sonhava acordado e foi através delas que eu visualizava esses sonhos, projetando-os em folhas de papel sulfite nas noites de sábado, quando meus pais saiam e eu ficava madrugada a dentro vencendo corridas de automóvel, pilotando aviões em guerras imaginárias, vencendo vilões interplanetários. Todo sábado era a mesma coisa: sentava confortavelmente no sofá, a televisão ligada com o volume baixinho, copos de Nescau, e papéis e lápis, nunca de cor, preferia os pretos, HB. Horas depois, meus pais chegavam, me davam um beijo e iam dormir. Antes disso, minha mãe tentava se interessar pelo que eu havia desenhado, com uma ternura sonolenta.
Houve um dia em que eu achei que seria um projetista de automóveis, minha então grande paixão, e criei centenas de automóveis nos anos que se seguiram. Mais que carros, criava histórias e é impressionante como hoje, revendo aqueles velhos desenhos, sou capaz de me lembrar o que ia pensando quando desenhava cada um deles. Projetava alguns modelos com os nomes das meninas que eu gostava, achava a idéia ótima. Me lembro bem de um coupê batizado de Sonia, uma garota com quem eu queria ser casado. Por isso era um carro de família, quatro portas, com espaço para filhos, cachorro e compras. Nunca mais a vi, mas o desenho eu tenho até hoje guardado, como recordação de uma paixão infantil.
Minhas mãos não me tornaram um designer de automóveis, não por culpa delas, coitadas, mas me ajudaram a ganhar a vida, sendo o que sou e tendo o que tenho. Me tornei um desenhista de geladeiras e fogões, com menos glamour, é claro, mas nunca deixei de dar a elas o reconhecimento merecido. Cada vez que viajava ao exterior para países distantes como  Suécia, Japão, Coréia, entre tantos outros, tinha o hábito de olhar para elas quando o avião estava prestes a pousar e agradecê-las como as responsáveis por mais aquela experiência. Olhava para a palma de minhas mãos, com a pele delicada próprias de alguém que sempre trabalhou com lápis e papel e agradecia por terem me ajudado a estar ali. Nesse momento eu as via como amigas, companheiras, quase com vida própria, que é o que todo homem sente com relação aos membros de cuja performance depende sua felicidade.
Foram elas, também, companheiras de minhas aventuras sentimentais. Me lembro da vez que peguei pela primeira vez na mão de uma namorada. Era a Zanza, irmã de meu amigo Ricardo. Durante uma festinha de garagem, saímos e fomos sentar no parachoque de um fusca branco estacionado na porta. Ela tomou a iniciativa...e senti sua mão quente, úmida, macia, segurando na minha. Eu gelei, mas me mantive firme. Me apaixonei perdidamente pela Zanza. Durou bem a festa toda. Dançamos coladinhos, sentia seu corpo gordinho, quase sem seios ainda, apertado contra o meu. O nirvana. Descobri, pouco depois, que ela fazia isso em toda festinha, cada vez com um garoto diferente. Frustrado, o homem-objeto sofreu, mas infelizmente, ainda loucamente apaixonado. A primeira mão a gente nunca esquece.
Nos relacionamentos futuros elas foram desenvolvendo mais e melhores habilidades, no início tímidas, depois cada vez mais ágeis e ousadas, aprendendo a cada ano que passava o momento certo de serem suaves e delicadas ou firmes e seguras. Com o casamento, uma delas ganhou uma aliança de ouro pesada e sólida, e aí, com os filhos que vieram, se tornaram gentis e protetoras, trocando fraldas e dando banhos em temperaturas tépidas. Adquiriram a indispensável habilidade de embalar para dormir, contando com uma ajudinha das poucas canções de ninar que eu tentava improvisar.
Anos depois, no entanto, veio o tempo que essa aliança pesou mais do que deveria e depois de muitas tempestades, foi arrancada com violência e determinação, deixando minha mão esquerda tão leve quanto minha alma.
Nunca foram capazes de tocar uma nota sequer de instrumento algum, e aí sim eu as denuncio como totalmente responsáveis por isso, mas o tempo passou e agora é tarde para elas se redimirem. Mas possuem a utilíssima capacidade de tamborilar velozmente no teclado de um notebook.
Noto que estão envelhecendo agora. Já tem algumas manchas e vez ou outra sentem uma certa fraqueza, talvez de cansaço. Já não desenham mais nem projetam sonhos, alguns já vividos na realidade dos anos, outros definitivamente abandonados, mas nunca esquecidos.
Hoje, quando olhei para minhas mãos eu vi, nas duas, como num álbum de fotografias, muitos momentos de minha vida.

2 comentários:

  1. Lindo texto !!! Parabens pelas palavras e sentimentos...
    Forte abraço
    Maco

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  2. Texto maravilhoso! Uma alegria especial descobrir que o Mário escreve tão bem!
    Um grande abraço aos dois, Mari e Mario!
    Pati

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